domingo, abril 13, 2008

Pedro Afonso publica on-line "Rapaz Areia"

Continuando a divulgar o que os moces da arca vão fazendo, fazemos aqui a notícia da publicação on-line da obra "Rapaz Areia" do Pedro Afonso.

April 6, 2008

Rapaz Areia
ou o testemunho de uma ilha desaparecida


Prefácio

pelo achador do documento

Existiu em tempos uma ilha ao largo da costa do Algarve em tudo semelhante às que ainda hoje insistem em proteger esta ria que me fascina. Uma ilha extensa, toda de areia branca que evaporava e ruía à força das marés, dos ventos e do sol. Esta ilha, agora impalpável e improvável, naufragou sem deixar pistas. Toda ela areia, excepto alguns barracos de madeira - os quais o mar tratou de lhes dar outros usos - e os barcos de quem lá os teve engolidos pelo tempo e pelas entranhas negras desta ria que os sustentou.

Não seriam nenhumas as provas da existência desta areia elevada do mar e da sua pequena povoação de pescadores se um evento extraordinário não me tivesse ocorrido. Ainda assim, as provas dessa existência deixarão dúvidas a quem quiser prová-lo topograficamente ou por outros meios físicos que nos servem de verdade. A minha certeza não vos chegará com certeza, mas o que vos apresento nesta aqui deixar-vos-á, no mínimo, inseguros em relação a um nada que outrora foi.

Tudo começou com uma viagem.

Numa manhã de Outubro, daquelas de luz impensável, fui dar uma volta pela ria na canoa que um amigo me emprestara. Conhecia relativamente bem os canais e as passagens que surgiam como que da luz ao navegar pelas águas espectrais da ria formosa. Por isso, tentava sempre navegar por novos canais e atravessar zonas que me pareciam desconhecidas. Dessa vez encontrei-me numa área na qual nunca antes tinha estado, uma zona já muito perto do mar, onde uma duna fina separava as águas serenas e mornas das ondas brancas. Parecia ter sido uma zona de uma antiga barra ou, no mínimo, um estreito canal de ligação da ria ao mar. Sabia que nunca antes lá havia estado e também nunca ninguém me tinha falado de tal local, era estranho uma baía tão perfeita não ser conhecida, mas entusiasmava me aquele sítio poder vir a ser um refúgio apenas conhecido por mim e por um ou outro navegador mais. Encostei à areia e saí da canoa, estava calor e estendi-me um pouco, dormi. Quando acordei a luminosidade feria e a minha cabeça andava à roda, julgo que por ter dormido ao sol, o qual, reflectido na água, parecia ser de pleno verão. Molhei-me um pouco, doía-me a cabeça, senti que tinha de voltar para a canoa e remar de volta antes que me acontecesse algo ali sozinho. Assim que me pus a remar comecei a perder os sentidos e virei a canoa, senti-me afundar. Quando retomei os sentidos perdidos estava no fundo da água e, pela agitação, tinha sido arrastado para o mar. Estava prostrado no fundo do oceano sem saber onde, mas espantosamente estava vivo. Não poderia estar longe da costa, pois para isso teria de ter viajado mais tempo do que o oxigénio que retia me permitiria. Tudo se passou em câmara lenta: olhei em volta e o fundo do mar era branco e liso, a meu lado estava, por mais difícil que seja acreditar, uma mesa de cabeceira com os pés enterrados na areia. Abri a única gaveta que havia, peguei no saco de plástico que lá se encontrava e ascendi à superfície que não era distante. Estava a trinta metros da costa e após recuperar o fôlego nadei de bruços segurando o saco com os dentes, mal podia esperar por me sentar na areia e investigar o que, pelo tacto, me parecia ser um livro.

O conteúdo do saco era um pequeno caderno demasiadamente bem conservado para eu não sentir a princípio alguma relutância em acreditar no que nele se encontra escrito. Esse caderno, que ainda tenho, fora um diário. Um diário de um jovem que tivera aquela mesa-de-cabeceira num quarto naquela areia onde acordei debaixo de água. Nesse diário é contado o dia a dia da única povoação, cerca de dez famílias, da ilha de Santa Lúcida que existira até há trinta anos, sem que ninguém parecesse saber, exactamente onde me afoguei naquela manhã. O saco de plástico que continha o caderno fora usado, não pelo seu dono prever a extinção da sua morada, mas pela simples razão do material do recipiente ser lhe tão pouco familiar que depositou nele o que de mais valioso possuía.

Muito se pode ler no diário desse jovem, o qual nunca o assina, sobre a vida na ilha, sobre os seus tormentos, desejos, as suas suposições acerca do resto do mundo que lhe era tão distante, mas eu, fortuito achador do documento, nunca me atreveria a publicar páginas tão pessoais de alguém que nunca conheci e que em parte alguma dos seus escritos revela essa vontade. Publico aqui apenas alguns poemas que esse jovem peculiar apontou no seu caderno. Estes serão aqueles que podem oferecer um quadro da sua vida e uma panorâmica da sua obra. Faço-o porque não poderia deixar esta ilha e este rapaz no sítio de onde me consegui salvar.

Apresento-vos o Rapaz Areia, poeta habitante da ilha de Santa Lúcida na costa do Algarve, esperando que por momentos se sintam naufragados e transportados por uma serena corrente misteriosa e invisível, como a mim e a esse Rapaz aconteceu.



ao João Bentes, com eterna amizade.

Pedro Afonso

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